Só trabalha quem não se garante no crime
Mohsin Hamid, Marie Darrieussecq e Nathalie Lourenço tecem críticas ao capitalismo e à corrupção inerente à riqueza
“Qual foi a pior coisa que você já fez por dinheiro?” pergunta o internauta no meme que já foi reproduzido tantas vezes, com tantos nomes e fotos de perfis diferentes, em tantas línguas e plataformas diferentes que já não é possível traçar quem essa pessoa original foi que, um dia, abriu o celular, entrou na sua rede social de preferência e perguntou à vastidão da internet: “qual foi a pior coisa que você já fez por dinheiro?”
A resposta canônica, caro leitor, cara leitora, você já tem na ponta da língua, então repita comigo no três:
“Trabalhei.”1
Volto a pensar nesse meme (se é que em algum momento eu já tenha parado de pensar nele) após esse feriado prolongado do Dia do Trabalho que, infelizmente, já passou. Fui para a praia? Não. Trabalhei? Um pouco, mas vou dizer que não. Descansei? Longe disso.
Como bom trabalhador, passei o Dia do Trabalho preocupado com o trabalho, com os boletos, com todas essas coisas da vida adulta que, passados os 30 anos, grudam na gente feito cracas e começam a fazer parte da nossa personalidade, dos nossos sonhos, dos nossos pesadelos e do nosso respirar cada vez mais curto e preocupado ao ver o preço do café subindo e o dinheiro na conta descendo.
Não à toa, e por pura coincidência, as leituras que me acompanharam no feriado abordam facetas diferentes, apesar de complementares, da nossa relação entre a vida, o trabalho, o corpo e a riqueza sob o capitalismo tardio.
Oprimidos sonham em ser opressores?
A primeira foi Como ficar podre de rico na Ásia emergente, do paquistanês Mohsin Hamid (lançado pela Companhia das Letras em 2014, com tradução de Sonia Moreira), que, desde o título, se propõe como uma sátira aos livros de autoajuda e à ideia do enriquecimento rápido através de uma fórmula. O primeiro parágrafo já dá a toada do que virá pela frente:
Olha, um livro de ajuda é um oxímoro, a menos que você seja o autor dele. Você lê um livro de autoajuda para que alguém que não é você lhe ajude, sendo esse alguém o autor. Isso vale para o gênero autoajuda como um todo. Vale, por exemplo, para livros da linha “como fazer”. E vale também para livros de desenvolvimento pessoal. Alguns poderiam dizer que vale até para livros de religião, embora outros possam declarar que os que dizem isso deveriam ser atirados no chão, imobilizados e ensanguentados até a última goa com o lento deslizar de uma lâmina de um lado para o outro de suas goelas. Então, é mais sensato simplesmente registrar que há uma divergência de opiniões quanto a essa subcategoria e passar para a próxima o mais rápido possível.
Caso tenha notado o uso da segunda pessoa, não se assuste, leitor, leitora: como é escrito como uma sátira ao gênero, esse romance é narrado para você, a figura que irá seguir os passos propostos a cada capítulo. Esse você pode tanto ser a pessoa que o lê (se ela for um garoto que nasceu numa aldeia pobre de um país asiático sem nome), quanto o personagem cuja história vamos acompanhar, desde a infância até a morte, muitos anos depois. Passando, é claro, por sua jornada de enriquecimento.
No centro do livro está a promessa deixada pelo título (ficar podre de rico na Ásia emergente), e os capítulos são nomeados como se fossem os 12 passos para, de fato, atingir esse objetivo. E a história que vamos ler entrega exatamente isso, acompanhando tanto “você”, quanto outra personagem sem nome, “a menina bonita”, cuja trajetória irá correr em paralelo com a “sua” desde a adolescência e seguirá uma trajetória semelhante, com pontos de cruzamento esporádicos.
Mas, não se engane, para se tornar podre de rico, seja na Ásia emergente, seja na América Latina, seja onde for, as regras serão as mesmas, pois não há riqueza construída sem passar pela exploração do trabalho alheio, pela corrupção, pela violência e pela falta de ética2. E é exatamente o que “você” fará nesse livro, se valendo especialmente dos conflitos armados, da desigualdade do seu país e da ganância dos mais poderosos que estão ao seu redor, sempre dispostos a lucrar em cima do sofrimento alheio. Mas, esteja avisado: não há amigos no mundo da riqueza, apenas chances de ganhar ou perder dinheiro. Como nos diz o narrador:
Porque se você quer se tornar podre de rico na Ásia emergente, como nós parecemos ter concluído que você quer, mais cedo ou mais tarde você terá que trabalhar para si mesmo. Os frutos do trabalho são deliciosos, mas não são particularmente nutritivos em separado. Então, não compartilhe os seus e morda os dos outros sempre que puder.
O surrealismo da opressão
O segundo livro que peguei, logo na sequência desse, foi Porcarias, da francesa Marie Darrieussecq (traduzido por Rosa Freire D’Aguiar), publicado pela Companhia das Letras em 1997, mas, infelizmente, fora de catálogo há anos.
Em Porcarias, uma mulher começa a trabalhar em uma perfumaria que, na verdade, é apenas a frente de uma casa de prostituição. Mas ela não se importa, pelo contrário, já sabia desde a entrevista que era isso que iria fazer, e se esforça para ser a melhor trabalhora, todos os dias, todas as semanas, todos os meses. Só que, por mais que dê, literalmente, o sangue pela empresa, os pagamentos não ocorrem diretamente do cliente para ela, mas sim, do cliente para a perfumaria, e da perfumaria para ela, como um típico esquema de cafetão-prostituta, ou de chefe-assalariado. E, por mais que trabalhe, não enriquece, não consegue acumular mais do que o suficiente para sobreviver (ou sequer o suficiente), e, aos poucos, seu corpo vai dando sinais de uma peculiar transformação. Sua pele fica rosada, grossa, com manchas escuras e uma penugem estranha. Surge um terceiro seio, depois um quarto, um quinto e um sexto. Seu nariz se torna um focinho. Suas mãos criam cascos. E, então, ela aceita: está se transformando em uma porca.
Quer dizer, o que pensei ver primeiro foi um porco dentro daquele vestido vermelho lindo, um porco-fêmea em certo sentido, uma porca se vocês querem mesmo saber, tendo nos olhos esse olhar de cachorro espancado que é o meu quando estou cansada. Portanto, vocês hão de entender que não foi fácil me reconhecer ali dentro. (…) Peguem uma menina bem saudável, ponham um vestido vermelho nela, façam que ela engorde e deem uma certa canseira nela, e vão entender o que eu quero dizer.
Essa metamorfose (e aí entra o absurdo, a sátira e a crítica), ao invés de afastar os visitantes da perfumaria, a torna a “vendedora” mais procurada, atraindo uma clientela diferenciada, com gostos peculiares e laços com as mais altas esferas da sociedade francesa. Entre eles, um político cujo lema, “por um mundo mais saudável” se mostra, quando associado às suas políticas, como um lema eugenista do pior tipo.
Escrito numa prosa vertiginosa, em longos parágrafos, e estruturado como uma confissão da narradora, esse é um romance incômodo não apenas por esses personagens e temas difíceis de engolir, mas, também, pela pessoa que o narra. A mulher-porco que nos conta sua história não é, também, flor que se cheire, e, apesar de ser explorada por esse sistema capitalista-surrealista, não o vê com olhos críticos. Pelo contrário, há sempre alguém sobre quem ela se coloca em posição de superioridade, não importando o quanto tenha sido escorraçada no parágrafo anterior. Mesmo se transformando em um animal e jogada de lá para cá, a hierarquia social permanece, e, enquanto não esteja na base, ela tem quem olhar de cima, pois, como confessa:
O trabalho tinha me corrompido.
A trabalhadora perfeita
O trabalho como fonte de corrupção, seja a corrupção econômica, seja a corrupção do corpo (ou da alma).
Não é uma ideia muito difícil de compreender, basta olhar ao redor (ou, dependendo do caso, para si). Na nossa sociedade embebida na lógica de produtividade alardeada, empacotada e vendida como a panaceia do século XXI, vivemos o tempo todo querendo (ou precisando) produzir, produzir, produzir para podermos consumir, consumir, consumir. É muito fácil, assim, esquecermos da nossa humanidade e julgarmos nosso valor pelo tanto que produzimos e por quanto ganhamos.
Num mundo em que inteligências artificias vão ameaçando o ganha-pão dos criativos e engessando o conceito de arte dentro de uma lógica de produção a toque de caixa para fins de consumo e não artísticos, vamos nos tornando mais robotizados, buscando sempre a máxima eficiência, sem perceber o quão anti-natural é esse pensamento. Quem nunca se sentiu culpado de estar dormindo enquanto eles trabalham? De atrasar a newsletter por estar exausto demais para escrever um texto? De sequer ter forças para cozinhar nossa comida favorita? Não à toa estamos sempre tão cansados, e nossa pele cada vez pior, independente do tanto de creme que apliquemos todas as noites.
Num desdobramento lógico dessa lógica ilógica, não seria estranho pensar que uma prática que nos tornasse produtivos até mesmo após a morte não seria tão rechaçada quanto se esperaria. Afinal, tem jornal que defende dia sim, dia também, bizarrices imensas em nome de bilionários que se aproveitam dessa produtividade forçada. Nessa linha, sou lembrado do conto O Cadáver Que Servia Macarrão, presente no livro Sabor Idêntico ao Natural3, de Nathalie Lourenço (lançado pela editora Vacatussa em 2021), que abre com a maravilhosa frase:
Mamãe morreu numa quinta-feira, de forma que na segunda já foi trabalhar.
Nessa história de implicações igualmente perturbadoras, um método novo, aprimorado pela observação de galinhas que sobreviviam mesmo após serem decapitadas, permite manter uma pessoa viva caso aplicado antes do corpo esfriar. Uma família que acabou de perder a mãe por um AVC é chamada de lado pelo médico, que oferece essa possibilidade de forma apressada, numa corrida contra o tempo: precisam decapitá-la o mais rápido possível. Na discussão que a oferta causa entre os parentes, a maioria escolhe pela aplicação do método, citando como a mãe adorava trabalhar, como adorava cuidar dos netos, como poderia ajudar com as contas.
O resultado, claro, é algo bizarro: uma mulher sem cabeça (e, portanto, sem consciência), que segue realizando as mesmas tarefas que fazia em vida, mecanicamente. A mulher sem cabeça vai para o trabalho num escritório, volta para casa, cozinha macarrão para os filhos e os netos, vai para o quarto e retoma tudo no dia seguinte. Usando de uma fina ironia, Nathalie nos mostra como esse autômato em forma de mulher se torna a funcionária perfeita, sendo elogiada por sua produtividade, por não precisar de pausas, nem perder tempo conversando com os colegas.
Quantos patrões não gostariam de ter funcionários (ou, como se costuma dizer, colaboradores) assim? Especialmente em casos como o dessa mulher, que não pôde dizer não a esse destino.
Oxalá caminhemos no sentido contrário!
Caderno de exercícios
O Caderno de hoje também é um convite para a oficina de maio Vencendo o Bloqueio, que vou ministrar online nos dias 17 e 24 de maio (dois sábados). Os encontros acontecerão das 14:30 às 16:00 e as inscrições já estão abertas, basta preencher esse formulário aqui.
Nessa oficina curta, vamos nos reunir para aprender sobre técnicas de desbloqueio criativo e vamos fazer exercícios de escrita criativa a partir de provocações como as que sempre trago nessa seção da newsletter. Porém, agora você poderá ter o seu texto lido e comentado por toda a turma, que também estará ali com o intuito de desbloquear a escrita!
Essa oficina é para você que está se sentindo travado ou travada na hora de passar as ideias da cabeça para o papel, para você que sente dificuldade na hora de ter ideias para seus textos, para você que está buscando uma comunidade de gente que também escreve para caminhar junto!
Então, se você quer ler, escrever, vencer o bloqueio criativo ou apenas participar de uma oficina de escrita criativa, esse convite é para você!
As inscrições estão abertas, e o investimento é de R$120,00 por pessoa. Mas, atenção: as primeiras cinco vagas terão um preço de inscrição promocional de R$90,00!
Então corre para se inscrever! Basta responder a esse formulário aqui!
Te espero lá!




Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso
Provavelmente lembramos desse meme de formas um pouco distintas. Sua reprodução (e reprodutibilidade) foi tamanha que ele deixou de ser apenas uma piadola de internet para adentrar na acepção mais conceitual do termo meme, como uma unidade de informação que se replica e se espalha de cérebro para cérebro, semelhante à propagação dos genes. Já não importa mais a formatação do meme (seu fenótipo), mas, sim, a informação, o sentimento que ele carrega, o que representa. Agora, de volta ao texto.
Às vezes, vindo junto a uma foto com o Luciano Huck, quando aplicado ao nosso contexto.
Esse eu não li agora, mas peguei para reler o conto enquanto escrevia esse texto. Que bom é ter os livros que a gente gosta nas estantes!
Eu sempre digo que o melhor dos livros (e artigos) são as notas de rodapé.
Mais um texto do Ivan que começa bem humorado e termina deixando a gente pensando...