1.
Na verdade, ela sempre esteve ali. Durante alguns anos era uma voz, apenas. Entre dormir e sonhar, como um sussurro atrás dos ouvidos, se esgueirando por dentro do meu crânio, ela surgia e me dizia seu nome.
2.
Minha primeira memória: dois, três anos de idade, numa cadeira em forma de avião bimotor, chorando e esperneando por ser obrigado a cortar o cabelo. Ela estava lá também, eu podia senti-la perto de mim, ao meu lado, talvez, colada ao meu ouvido, igualmente chateada. Mas ela não tinha forma ainda, não tinha voz. Era uma nuvem, uma mancha na lente, uma ideia.
3.
A primeira vez que a percebi aconteceu alguns anos depois, na escola. Numa partida de futebol do interclasses. Eu representava a sexta série, na zaga, tentando frear os javalis enfurecidos da oitava. Tinha que dar tudo de mim, e mesmo assim não era suficiente. Perdíamos de três a um na metade do segundo tempo, a caminho do quatro a um e da desclassificação. Um daqueles atacantes imensos e suados recebeu o passe e vinha na minha direção, desimpedido. O goleiro já mostrava sinais de desistência. Dependia só de mim. Entrei. Ele não parou. A bola subiu. Crac.
No pronto socorro, o raio-x confirmou a fratura na tíbia e na fíbula. O doutor chamou meus pais de lado e apontou para o lugar onde uma faca parecia ter atravessado os ossos e vaticinou: parafusos, fisioterapia, o pacote completo. Concordaram. No meu ouvido, um lamúrio fraco.
4.
Acordei da cirurgia e lá estava a perna levantada, envolta em gesso. Virei o centro das atenções no primeiro dia de volta à escola, do jeito que sonhava, igualzinho aos filmes dublados que passavam de tarde na tv: todos queriam assinar o gesso, me perguntavam das muletas, da dor, dos parafusos. Fiquei de fora das aulas de educação física, fui usado de exemplo na aula de ciências, quando aprendemos sobre o corpo humano em transparências que mostravam os ossos, os órgãos, as veias que todos partilhavam. Quando o professor apontou para a perna esquerda na imagem, ganhei um sorriso do menino que eu gostava.
Foram boas semanas, que acabaram rápido demais. De repente, o gesso foi retirado com uma serra circular, e, após a primeira sessão de fisioterapia, o incômodo se fez notar. Não físico. Diferente. Um incômodo profundo, quase emocional, no osso, me dizendo: tira isso daqui. Meus pais levaram a questão ao médico, achando que era apenas a reclamação de uma dor passageira. Ele pediu novo raio-x com igual despreocupação, e, ali, naquele branco-sobre-preto da chapa, vimos, pela primeira vez, a cidade.
5.
Para toda a comunidade científica, para os jornais, para os curiosos e para os analistas amadores, ela é Magdalena, a misteriosa cidade dentro do meu corpo, construída sobre (e sob) meus ossos, que surgiu na minha fíbula e, ao longo dos anos, vem crescendo. Para alguns, ela pode ser considerada uma infecção, pela forma como subiu para o meu fêmur, chegou ao ilíaco e ao sacro e se bifurcou: parte desceu rapidamente pela outra perna, parte subiu lentamente pela L5. Para outros, é uma grande enganação, como o menino magnético de Goiânia, ou a mulher que chora cristais em Araraquara. Afinal, dizem eles, por que as imagens são tão escassas e tão ruins? Isso é culpa minha. Enquanto para eles essa cidade é um mistério a ser desvendado ou contestado, para mim, ela é Magdalena, meu corpo, meus ossos. Ainda não sabem, mas, aos poucos, a cidade tomou meus órgãos, se espalhou pelos músculos, invadiu meu crânio, tomando conta do que encontrava no caminho. Que me perdoem os curiosos, apenas permitirei novos raios-x, ultrassons ou ressonâncias quando de fato precisar, por motivos médicos. Há anos, o corpo não me incomoda o suficiente para gerar novas imagens.
6.
Diante das transparências do corpo humano, naquelas aulas de um passado distante, eu já sabia estar olhando para algo que não era meu, para algo que eu fingia ter. Que fingia ser. A visão dos colegas, do menino, me fazia retrair na carteira. Como reagiriam se soubessem que, no lugar do estômago, eu tinha uma praça? Ou que, dentro de cada dedo do pé, havia favelas? Me julgariam pelas avenidas que cortavam meu pescoço, ou pelos bares e teatros que habitavam meu peito?
7.
Apesar de não sentir seus habitantes, escuto suas vozes, as sirenes, as buzinas. Certa vez, durante a madrugada, uma tragédia: a grande torre do centro, o prédio histórico de outro século, imersa em chamas. Há anos ocupada por sem-tetos, em poucos minutos veio ao chão, levando todos que não conseguiram escapar. Não foram as ambulâncias, os helicópteros, os caminhões dos bombeiros que me mantiveram acordado durante a noite. Foi pensar nos que nem acordaram a tempo da queda. Fecharam os olhos e não viram o fogo, o metal, a fumaça.
8.
Às vezes me pergunto: como consigo andar, se tenho uma cidade por dentro? Como respiro, como me alimento, com uma cidade por dentro?
9.
Por algum tempo, resisti à cidade. Tive medo, como não? Ouvia uma obra de expansão da avenida durante uma prova, tentava me concentrar em qualquer tarefa enquanto os cascos do cavalo de um carroceiro batiam sobre o asfalto quebradiço das ruas da periferia, por vezes acordava com a britadeira de alguma reforma de calçada no centro comercial. Magdalena seguia crescendo junto do meu corpo, mas não deixava seus barulhos, suas músicas, seus gritos serem ouvidos por ninguém mais. E eu preferia assim, não precisaria explicar que havia uma cidade dentro de mim.
10.
Acima dos prédios, vejo o céu azul, às vezes cinza, alaranjado, vermelho. Será, esse céu que vejo, o lado de dentro de uma outra pessoa? Não me incomodaria estar debaixo da pele de um outro ser. Um igual. E eu, por consequência, teria, dentro de mim, todas as cores do céu.
11.
Magdalena, a cidade que carrego dentro. A cidade que se nomeou. A cidade que não pude resistir. Até que ponto vai a cidade, e a partir de que ponto eu começo?
12.
Terminei o colégio e segui minha vida. Mudei de cidade, para longe das pessoas que me conheciam como uma pessoa de carne, que ignoravam o cimento, o asfalto e as árvores que eu carregava por baixo da pele. Dei adeus a todos que não conheciam Magdalena, e deixei sua voz me sussurrar suas histórias entre o dormir e o acordar. Não poderia mais negar, não tinha como, não tinha por quê.
13.
Às vezes me pergunto: como as pessoas andam por aí sem cidades por dentro? Como enxergam? Como respiram? Como pensam? Como choram, sem cidades por dentro?
14.
Hoje, decido aceitar a verdade. Eu não sou essa pessoa estranha que esconde ter avenidas, casas, prédios, farmácias, rios, pontes, estradas, túneis e padarias debaixo da pele. Eu não sou a pessoa insone que se preocupa com os seus habitantes. Me enganei esse tempo todo. Eu sou Magdalena, uma cidade em forma de corpo. A ela me entrego e ela me torno. Resistir não me trouxe nada de bom. Sorrio, como somente uma cidade consegue sorrir. E, pela primeira vez, Magdalena fala com a minha voz. A sua, a minha, misturadas, deixando nossa boca. Eu: cidade.
Na edição de hoje, volto à publicação de ficção por aqui depois de um longo período (a última vez que trouxe um conto foi em abril). Esse aqui é um do qual gosto muito, pois, além de ser mais uma Magdalena, saiu na Revista Julia #3, uma publicação da Arte & Letra que, além de belíssima, faz um trabalho maravilhoso de divulgação de novos escritores.
Espero que tenha gostado! E, se puder ajudar essa história a atingir novos leitores e novas leitoras, posso te pedir uma ajuda na divulgação?
Ah, se você escreve ficção, a Julia está com chamada aberta para a 5ª edição. Leia o edital e envie o seu conto!
E, se precisar de uma leitura crítica antes de enviar, ofereço esse serviço! Entre em contato para saber mais.
Caderno de exercícios
No exercício de hoje, a proposta é o estranhamento. Para escrever esse conto acima, eu parti da ideia de imaginar o crescimento físico e emocional de uma pessoa, mas visto de uma forma diferente, incluindo um elemento novo, uma forma insólita de olhar para algo que todos nós atravessamos. Para isso, usei a ideia de uma cidade que também cresce, e uni as duas imagens numa só, criando a Magdalena que cresce dentro da pessoa, junto com ela. Por isso, te proponho o seguinte:
Pense em um objeto do seu cotidiano, algo que te acompanha todos os dias. Agora, imagine que você está vendo esse objeto pela primeira vez, como um alienígena, uma criança, ou um animal. Descreva esse objeto de forma esdrúxula, distante do seu olhar viciado, e repare no que surge de novo, de diferente, ao descrevê-lo assim.
Deixe a caneta livre e acompanhe os movimentos da sua mente. O exercício, aqui, não exige a criação de uma história, apenas um jeito de olhar, de descrever.
Boas escritas!
Ajude o autor!
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Contrate uma leitura crítica do seu livro, me enviando uma mensagem aqui ou no Instagram!
Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso.
Que conto instigante, Ivan! Gostei do formato fragmentado, dos estranhamento, do mistério que cada um carrega em si. Fez o que a literatura faz e que me agrada: me deixou pensando, inclusive lembrando de quando quebrei o pulso jogando futebol na escola. De lá pra cá, acho que uma cidade nasceu em mim também.
Abraços