Cientistas aurovianos descobrem acidentalmente a pílula da inteligência; entenda.
Grupo de pesquisa investigava o comportamento de mamutes quando chegou aos resultados. As primeiras doses ainda aguardam aprovação para serem distribuídas.
Gazeta de Magdalena, 04 de abril de 2226
De remédios para a pressão desvendados no veneno de cobras à descoberta do primeiro antibiótico em placas de Petri mofadas, a ciência avança há séculos através de descobertas fortuitas, provando que há sempre algo a mais para ser enxergado onde menos esperamos. E o exemplo mais recente desse fenômeno veio direto do Instituto Auroviano de Tecnologia (IAT), que diz ter descoberto uma droga capaz de aumentar a inteligência humana enquanto pesquisava, acredite se quiser, o comportamento de mamutes.
Paquidermes inteligentes
A descoberta se deu em meio a uma pesquisa de longo prazo liderada pela Profa. Dra. Geovanna Sant'Anna, responsável também pela clonagem de Kalimba em 2220, o primeiro mamute gestado em útero artificial. Segundo a Profa. Dra. Sant'Anna, a equipe de cientistas vinha observando, continuamente, o comportamento dos dezessete indivíduos mantidos em cativeiro no Departamento de Ciências Biológicas do IAT quando notou que os mamutes idosos, apesar de apresentarem sinais claros de senescência física, não apresentavam qualquer sinal de perda de memória, como seria o esperado. Mas a grande surpresa veio quando começaram os testes.
“Achamos curioso, porque assim como nos humanos e em outras espécies em cativeiro, a gente espera que [o envelhecimento] venha acompanhado desses processos de senescência física e mental. Aí começamos os testes AMCRP (sigla para Aprendizado, Memorização, Criatividade e Resolução de Problemas) e notamos que eles não apenas não estavam perdendo capacidades mentais, mas a grande maioria apresentou resultados significativamente mais altos do que na juventude”, afirma a Profa. Dra. Sant'Anna.
A pesquisa foi além e após séries de autópsias e estudos bioquímicos, a equipe da Profa. Dra. Sant'Anna descobriu a presença de duas moléculas responsáveis por esse retardo nos processos senis, como relataram em dois artigos científicos publicados na revista Zoological Findings1,2. Isoladas nos laboratórios do Departamento de Pesquisas Bioquímicas e Farmacêuticas do IAT pela equipe liderada pelo Dr. Miguel Kaloponoukos, as moléculas receberam os apelidos de Int-A e Int-B3.
“As duas funcionam de forma semelhante à bioluminescência, onde você tem uma molécula e uma enzima, a luciferina e a luciferase. Elas estão presentes nos animais com essa habilidade o tempo todo, mas só quando uma oxida a outra é que elas geram a luz. No caso dos mamutes, a Int-A e a Int-B estão presentes nos mamutes desde a infância, como relatou a [Profa. Dra.] Sant'Anna, mas é apenas quando idosos que elas começam a atuar”, afirma Kaloponoukos.
O doutor também se mostrou confiante ao dizer que em breve as moléculas poderão ser ingeridas por humanos, curando doenças senis como o Alzheimer. Aplicadas em adultos, poderão aumentar infinitamente sua capacidade cognitiva.
“É preciso ter calma com essas afirmações. Por enquanto só sabemos da presença dessas moléculas em mamutes idosos, ainda há muito a ser estudado. Ainda não sabemos, por exemplo, como....”, interrompe a Profa. Dra. Sant'Anna.
A Droga da Inteligência
A gigante farmacêutica Somnus demonstrou interesse e iniciou a produção de cápsulas a partir de Int-A e Int-B enquanto aguarda o registro de patente do medicamento que estão chamando de Noimosyn. As moléculas são extraídas de forma sustentável a partir de indivíduos em cativeiro, sem ameaçar populações selvagens de mamutes.
“O nome veio de νοημοσύνη (pronuncia-se noimosýni), a palavra grega para inteligência”, afirma Wagner Abdias Nascimento, gerente de marketing da Somnus-Auróvia.
As doses de Noimosyn-A e Noimosyn-B deverão ser ingeridas em conjunto a cada doze horas, e espera-se um aumento de 130 a 150% das capacidades cognitivas em adultos saudáveis, segundo a Somnus-Auróvia. O medicamento, porém, aguarda aprovação federal de segurança e eficácia, mesmo após a divulgação dos testes realizados pela Somnus dentro do próprio IAT.
“São apenas formalidades. Estamos confiantes que as primeiras doses já poderão ser distribuídas no primeiro trimestre de 2227”, afirma Abdias Nascimento.
“Não, minha gente, o que é isso? De onde ele tirou esses números? É ridículo dizer essas coisas!”, interrompe novamente a Profa. Dra. Sant'Anna, logo antes de ser convidada a se retirar.
O Instituto Auroviano de Tecnologia
Localizado em Magdalena, capital intelectual da Auróvia, o Instituto Auroviano de Tecnologia ficou mundialmente famoso no final do século XXII, quando anunciaram o nascimento de Vishnu, o primeiro mamute clonado, nascido do ventre de aluguel de Lakshmi, elefante indiana doada ao instituto através de uma colaboração internacional.
“Olha, vocês tem que me ouvir, tudo o que a gente descobriu foi...”, diz a Profa. Dra. Sant'Anna invadindo a sala de entrevista e desviando dos nossos seguranças, “...que existem essas moléculas no cérebro dos mamutes. A gente ainda nem sabe como elas tornam eles mais inteligentes com a idade. Me larga!” grita a Profa. Dra. Sant'Anna, constrangendo a equipe de reportagem.
Apesar de não seguir o rumo de outros institutos de tecnologia, clonando mamutes para gerar lucro nos mercados agropecuário e têxtil, o IAT se consolidou como uma referência em pesquisas comportamentais e de preservação dos paquidermes assim que a espécie se tornou ameaçada de extinção, em 2218.
“Vocês não podem simplesmente tirar essas conclusões do cu e prometerem uma droga milagrosa sem provas. E outra coisa, como vocês estão colhendo as moléculas? São dos meus mamutes?”, questiona a Profa. Dra. Sant'Anna à equipe da Somnus, que se recusa a responder e ameaça deixar a entrevista.
Foi graças ao esforço de cientistas como a Profa. Dra. Sant'Anna, e à produção de mamutes em útero artificial, que a estabilidade da espécie pôde ser recobrada e devidamente explorada.
“Produção? Eles são seres vivos!”, afirma a Profa. Dra. Sant'Anna sugerindo uma revisão terminológica à equipe de reportagem.
“Produção de mamutes, produção de moléculas, produção de artigos, produção de conhecimento. Não vamos nos ater demais aos termos, por favor”, comenta Abdias Nascimento, indicando para que a equipe de reportagem prossiga.
Desde então, o IAT tem gerado 90% de seus rendimentos através de parcerias com frigoríficos como a Mammomeat, subsidiária do grupo Fletcher, que é dono, entre outras, da farmacêutica Somnus e da Gazeta de Magdalena. É apenas através destas parcerias que os Departamentos de Ciências Biológicas e de Pesquisas Bioquímicas e Farmacêuticas conseguem se manter em atividade, garantindo a renda de todos os seus pesquisadores e de suas famílias. Algo que, pela expressão da Profa. Dra. Sant'Anna, lhe era desconhecido até o momento.
“Sant'Anna, por favor”, sussurra o Dr. Kaloponoukos, “não ponha um alvo nas suas costas. É ridículo, eu sei, mas não há como ganhar.”
“Miguel… Mas eles…”, balbucia a Profa. Dra.Sant'Anna. “Os mamutes…”
“Isso vai muito além dos mamutes. Sorria, concorde e continue pesquisando. A pílula sai ano que vem, querendo ou não. Se não concordarmos, eles encontrarão outros para concordar. Não faça como a [Profa. Dra.] Nora [Herbert-Swift]”, pede o Dr. Kaloponoukos em meio ao silêncio da Profa. Dra. Sant'Anna.
“O quê, me aposentar?”, pergunta a Profa. Dra. Sant'Anna.
“Sofrer um aneurisma”, corrige Abdias Nascimento em alto e bom som, para mostrar que os sussurros não foram tão secretos assim. “Ano passado, não ficou sabendo? Foi realmente uma pena”, lamenta.
“Sant'Anna…” pede o Dr. Kalonopoukos.
A pílula
Com mais essa grande descoberta, o IAT confirma seu lugar de excelência no panorama científico mundial, já atraindo novos investimentos e parcerias. Uma indicação ao Prêmio Nobel aos líderes da pesquisa parece garantida, bastando apenas que a substância seja aprovada nos testes.
Os comprimidos de Noimosyn-A e Noimosyn-B chegam às farmácias no primeiro trimestre de 2227 (“Nem um dia a mais, nem um dia a menos'', salienta Abdias Nascimento), e as caixas com 30 ou 60 doses custarão entre 900 e 1150 coroas.
“Correto, [Profa. Dra.] Sant'Anna?”, questiona Abdias Nascimento.
“Vamos, Sant'Anna”, pede o Dr. Kaloponoukos. “Dê o braço a torcer. Amanhã é um novo dia para lutar.”
“Correto”, afirma a Profa. Dra. Sant'Anna e se retira da sala.
Uma cidade, um delírio
Uma primeira versão da história acima já apareceu na Pulpa, e faz parte do meu projeto Magdalena: cidade-delírio, uma série de contos que trazem a cidade de Magdalena como ambientação. Magdalena não é uma cidade comum, é um delírio, um sonho, algo no meio do caminho. Não existem duas Magdalenas iguais. A cada conto a cidade ressurge, sempre diferente, mas sempre com um toque fantástico.
Vim me dedicando à escrita desses contos há meia década, e cogito trazê-los para vocês que me assinam, que me leem, como edições especiais com sua própria identidade visual. Por isso, pergunto:
Caderno de Exercícios
A ideia deste conto surgiu a partir do conflito que existe entre o passo lento e meticuloso das descobertas científicas e as promessas bombásticas feitas pelas manchetes que noticiam essas descobertas. Dessa forma, te proponho os seguintes exercícios:
Escreva um conto, poema ou crônica com inspiração em uma manchete do caderno de ciência de algum jornal de grande circulação.
Escreva um conto, poema ou crônica no formato de uma matéria de jornal.
Escreva um conto, poema ou crônica onde uma notícia de jornal é central à história.
Adorarei ler o que você produzir a partir disso.
Boas escritas!
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso.
Sant'anna, G., Herbert-Swift, N., et al. (2223). Increased presence of 2,3-desoximethlone and alpha-hydrocarbonase in adrenoreceptors of ageing wooly mammoths. Zoological Findings 463, 42-47.
Sant'anna, G. Kaloponoukos, M., et al. (2225).Hyper-intelligence-related molecules in wooly mammoths? What we know so far. Zoological Findings 464, 51-78.
Kaloponoukos, M. et al. (2224). Isolation and 3d modeling of 2,3-desoximethlone and alpha-hydrocarbonase in wooly mammoths: the hyper-intelligence molecules. Biochemistry Quarterly 102, 12-20.