O encontro da ficção científica com o romance
Romantífica, de Thiago Ambrósio Lage, traz contos de casais ambientados em mundos futuristas
Esse foi um livro que me tirou da minha zona de conforto de um jeito sutil, mas marcante. Explico:
Ao terminar Malus restituta, o primeiro dos 10 contos de Romantífica, coletânea de Thiago Ambrósio Lage, fui pego de surpresa pelo desenlace da história. O final era feliz. Os personagens conseguiram o que buscavam (ou algo muito próximo disso), e não havia consequências nefastas escondidas, implicações implícitas a serem exploradas. Havia apenas o mundo de invenções biotecnológicas tentando mimetizar espécies de plantas extintas e tentando reverter a passagem do tempo sobre o rosto de humanos. E, nesse mundo, dois personagens sorrindo, juntos.
Aquilo me incomodou, a princípio. Mas eu ainda não sabia o que era esse incômodo. Li o conto seguinte, O Teste Anti-Turing, e, na história de um homem que se apaixona por uma inteligência artificial tão próxima do real que o confunde, encontrei o oposto: um final incômodo, com um destino horripilante para seus personagens. Aquilo, sim, era o tipo de final que me atraía.
Mas, então, voltei ao primeiro conto e o reli. Dessa vez, o final não me incomodou. Pelo contrário, eu pude ver o que Thiago colocou ali. Em um mundo cheio de tecnologias que tentam imitar o que já foi, Rubens retorna a Palmas, cidade onde passou sua juventude e viveu um longo romance com Flávio, cujo término o marcou profundamente. Entre reuniões de trabalho e reencontros com antigos rostos, ele relembra o amor que sentiu, os momentos bons, os momentos ruins, e visita locais que já não são mais os mesmos, em busca de um reencontro com o amor, de uma nova chance, e não necessariamente com a juventude, com o que já foi. Quantos de nós já não buscamos isso uma vez ou outra? E por que, então, não festejar quando alguém consegue exatamente isso?
Meu incômodo inicial, percebi, vinha da minha própria zona de conforto, tão enraizada nas histórias incômodas que marcam o tal do gótico latino-americano, em especial as de autoras como María Fernanda Ampuero e Mariana Enriquez, que buscam usar dos terrores reais para criar suas paisagens fantásticas e assombrosas. Mas Thiago vai no caminho oposto nos contos de Romantífica, e busca mostrar, através da ficção científica, histórias de romances que podem, sim, ir para um terror ou para um incômodo, mas também podem nos levar para um final feliz (mesmo que passageiro). Faz bem, de vez em quando, sair dessa realidade tão cheia de infortúnios e mazelas para todos os lados, e encontrar a felicidade prometida, uma realização de um desejo real no âmbito da ficção.
Passado esse choque inicial de estar fora da zona de conforto, o livro se abriu de uma nova forma à minha frente, e encontrei ali mundos intricadamente criados, e personagens muito bem selecionados para ressaltar o que havia de bom e de ruim nesses futuros de Thiago.
É o caso, por exemplo, de Frequência Binaural, conto curtíssimo e impactante ambientado em um mundo onde foi descoberta uma frequência sonora que, escutada constantemente, aumenta a inteligência de seus ouvintes. Em poucas frases, Thiago nos mostra como isso se enraizou na sociedade e transformou tudo ao seu redor: as pessoas caminham com fones de ouvido o tempo todo para não deixarem de escutar a frequência da inteligência, deixam de escutar todo o resto ao seu redor e se comunicam através de uma língua de sinais. Coaches vendem técnicas de escuta, especialistas recomendam que os bebês as escutem, um fone de ouvido que cai no chão é uma ofensa a todos. Mas há quem ainda não a escute, e, nisso, surgem as personagens que marcam esse conto: um casal que, na sua cumplicidade e na sua parceria, emergem como duas rosas em um asfalto frio e cinzento. É um conto lindo, que se resolve em poucas páginas, mas segue reverberando.
Da mesma forma, A Cidade do Átomo nos leva para o lado de uma mulher em missão diplomática com o objetivo de revolucionar a matriz energética brasileira após o desastre ambiental de Itaipu. Nesse mundo de história alternativa, a União Soviética não ruiu após a queda do muro de Berlim, mas, sim, se tornou a grande potência mundial. É curioso ver quão bem Thiago construiu esse mundo e todos os outros que habitam seus contos, mostrando-os através de personagens singulares e experiências muito particulares que, de certa forma, refletem o que há de mais real no mundo: suas pessoas.
Mas, uma ressalva: Romantífica não se constroi apenas sobre finais felizes. Banco de Horas, por exemplo, mostra a desumanização que a cultura de “vestir a camisa” da empresa pode levar, especialmente ao ser pareada com tecnologias de controle e vigilância. Da mesma forma, Atualizações Automáticas revela uma faceta pouco falada sobre relacionamentos abusivos ao escolher como palco um mundo onde androides de relacionamento são uma realidade. E Mais Rápido Que A Luz nos apresenta problemas quase clichês de casais infelizes em relacionamentos de longa distância. A distância nesse conto, porém, é interplanetária e, por isso mesmo, mais interessante de se ler.
Romantífica: palavra criada a partir da união de Romance e Ficção Científica. Em seus 10 contos, Thiago faz jus ao nome que escolheu, explorando as muitas facetas dos relacionamentos humanos, sejam eles atravessados pela tecnologia ou não.
Título: Romantífica
Autor: Thiago Ambrósio Lage
Editora: Urutau
Ano: 2023
Páginas: 112
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Nos vemos na próxima!
Um abraço,
Ivan Nery Cardoso.