O céu da selva e o terror da maternidade compulsória
Em seu novo romance, Elaine Vilar Madruga cria um cenário de horror em meio à natureza
Imagine que no meio de uma densa selva caribenha há uma fazenda. Nela vivem uma idosa, suas duas filhas adultas, um homem adulto e dezenas de crianças. Criam galinhas, possuem uma horta, e nada parece lhes faltar.
Vamos chegar mais perto.
Uma das filhas está dentro de um quarto. São grades na janela? A porta está trancada? O que são esses sons que emite toda vez que o homem se aproxima da janela? As outras crianças também estão presas em um quarto. A outra filha, veja, está indo para a borda da selva. Está levando uma das crianças consigo. As duas estão entrando na mata. A criança está chorando, e a selva, veja, não está mais verde. Está tingida de vermelha, cor de sangue! E o que a mulher vai fazer com aquela faca na mão?
Essa cena resume, em partes, o cenário e as dinâmicas que estão no centro de O céu da selva, novo romance da cubana Elaine Vilar Madruga que foi lançado por aqui pela editora Instante com tradução de Marina Waquil. Mas é Santa, a mulher com a faca na mão, quem nos explica o que realmente está acontecendo aqui:
Uma vida por outra vida. Uma carne por outra carne. A selva dá e a selva tira. A selva permitia que vivessem dentro de seu ventre, abria e fechava os caminhos porque era deus, e com deus não se brinca, muito menos com o alimento de um deus que ficou esperando que suas feras, os súditos de seu esplendor, viessem lhe oferecer o tributo prometido: a carne, a axila suada com fedor de jovem, fedor de vida, o sangue onde brotam os hormônios em forma de casulos.
Não falta nada na vida dessas mulheres na fazenda, vivendo isoladas de um mundo violento do qual escaparam há muitos anos. Mas a prosperidade e a segurança cobram um preço: a vida de uma das crianças sempre que a selva (ou a entidade que habita a selva) pede.
Sobre a cabeça das crianças paira o constante medo da morte. Quando serão as escolhidas? Mas, para as mulheres, o terror é outro: o da pressão constante de estarem grávidas, parindo novas crianças, preparando novos sacrifícios. Há um homem, Lázaro, que realiza a metade que lhe cabe nesse processo, e a selva também traz forasteiros esporadicamente para a fazenda. Quando são homens, são levados para se deitar com Santa ou com sua irmã, Ananda. Quando são mulheres, chegam grávidas, prontas para parir e deixar seus filhos ali, aos cuidados das mulheres que moram na fazenda, engordando a reserva de sacrifícios humanos para a selva. Há uma espécie de equilíbrio armado, mas o que acontecerá quando a selva pedir um sacrifício e elas não tiverem mais filhos para dar?
Essa relação transacional, mecânica e constante com a maternidade, para além do horror de assassinar crianças regularmente, vai criando uma dinâmica desumanizadora dentro dessa família, se assemelhando à criação de reses para o abate. Dessa forma, o valor de cada uma só é enxergado pelas outras, sejam elas suas mães, irmãs ou filhas, desde que possam realizar a única função que a selva lhes pede: ter filhos. Não à toa, elas chamam as crianças apenas de “crias”, e constantemente se comparam aos animais que criam nos cercados:
— Você é apenas a nova galinha poedeira (…), e esta fazenda, minha mãe e a selva não se importam com as galinhas. Vão montar em você, vão te deixar prenha, suas crias vão nascer aqui. Se crescerem e ficarem grandes, um dia vou esfaquear todinhas. Não te contaram? Lázaro não te contou? Não te explicou que toda vez que você abre a boceta pra ele está apenas preparando o novo alimento de deus?
Quando o romance começa, porém, esse brutal equilíbrio está ameaçado. Ananda, enlouquecida após uma grande catástrofe, é mantida presa em um quarto e se recusa a engravidar, e Santa, a única que segue se deitando com Lázaro ou com os forasteiros, acaba de entrar na menopausa. Entram em cena, então, duas figuras que irão representar os destinos possíveis para a fazenda.
De um lado está a mãe das duas (e de tantas outras), chamada apenas de “a Velha”. Completamente dessensibilizada por anos de partos compulsórios e subsequentes sacrifícios, ela comanda a fazenda com mão de ferro, distribuindo punições a todas que desobedecem a única regra da fazenda. Em suas mãos está a coleira do patriarcado, o terror da maternidade compulsória, a visão estreita da utilidade de uma mulher apenas enquanto puder dar filhos à sociedade. A Velha se tornou, com os anos, apenas uma serva desse deus faminto que é a selva, cobrando de mulheres mais jovens o mesmo que foi cobrado dela: reproduzir, reproduzir, reproduzir. Santa enxerga na figura da mãe o seu destino que chegou de repente, mas passa a questionar tudo após a chegada da segunda figura: Romina, uma prostituta grávida que a selva traz.
Como tantas outras, Romina fugiu da cidade para escapar da violência de gênero. Cansada de ver suas amigas (e tantas desconhecidas) aparecerem mortas, com marcas do crime no corpo, e terem seus cadáveres cuspidos por uma sociedade que as julga inferiores, ela escolhe tentar a sorte na selva, onde poderá, pelo menos, ter seu filho em paz, longe das ameaças de Caranguejo, seu ex-cafetão, dos clientes, ou dos homens em geral. Mas a selva, pelo contrário, oferece apenas uma outra forma de dominação: a fazenda, os sacrifícios. Ali, Romina descobrirá, não existe fuga possível, e a família não tornará sua existência mais fácil ou agradável do que a cidade de onde fugiu:
Na verdade, qual era a diferença entre criar filhos para a selva ou pari-los no bairro, debaixo de uma ponte, entre o pó da rua e o pó branco nas suas veias? Qual era a diferença entre dar seus filhos para alimentar a selva e para alimentar os Caranguejos do mundo?
E se você, leitora, leitor, achar que eu estou dando spoilers com esse texto, acredite, esse é apenas o começo, o pano de fundo do livro. O céu da selva, em suas pouco mais de 200 páginas, se estabelece como uma intricada narrativa que engloba anos das vidas dessas mulheres e os terrores que vivem sob o patriarcado (ou sob a selva).
A maternidade compulsória, o feminicídio, a dominação do corpo e da mente, a vergonha criada em cima do desejo, tudo isso aparece ao longo da história, mas, sabemos, é a realidade de muitas mulheres na realidade compartilhada fora das páginas. Mesclando uma prosa poética a temas e situações duras, pesadas e desconfortáveis, Elaine Vilar Madruga apresenta o terror de ser forçada a ser mãe, a ver seu valor como indivíduo reduzido à sua capacidade reprodutiva, a ver seu destino ser traçado sobre a mesma linha que foi traçada para suas mães, tias e tantas outras que vieram antes, se perguntando se há escapatória dessa fazenda, dessa selva impiedosa:
Nesta fazenda também havia desgraçados como na cidade, porque as pessoas são más em todo lugar, porque o bodum da maldade é pior que o fedor da morte, e todo mundo sabia disso sem precisar ser uma cachorra.
Talvez não exista terror maior do que ver que o terror do qual se tenta escapar te persegue e te encontra, onde quer que você olhe. Mas aqui fora, no mundo real, nossos destinos não estão completamente traçados. Ainda podemos lutar contra, quebrar as correntes dessa dominação e garantir um futuro melhor não apenas para as próximas gerações, mas para a nossa e para as que vieram antes. E O céu da selva nos convida a fazer exatamente isso.
Conseguiremos escapar?
Título: O céu da selva
Autora: Elaine Vilar Madruga
Tradução: Marina Waquil
Editora: Instante
Páginas: 240
Nota
Esse é o segundo romance de Elaine Vilar Madruga publicado por aqui. A editora Instante também publicou o ótimo A tirania das moscas, que recomendo muito, e do qual falei lá no Instagram:
Caderno de exercícios
Confesso que foi difícil pensar em um exercício de escrita a partir de um romance tão, mas tão duro. Mas, por fim, cheguei a uma possibilidade. Não mencionei na resenha, para não me estender demais, mas uma das personagens do romance é uma mulher chamada de “A Cachorra”. Toda vez que aparece, a narração passa para a segunda pessoa, criando uma aproximação entre a personagem e quem está lendo, alinhando os pontos de vista para trazer um novo olhar para a história.
Assim, o que te proponho hoje é: escreva uma história (em prosa ou em verso) em segunda pessoa, ou seja, usando o “tu” ou o “você”.
Boas escritas!
Ajude o autor!
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso