Fantasmas (in)familiares
"O bom mal", novo livro de Samanta Schweblin, traz seis narrativas inquietantes sobre fantasmas e traumas
Uma mulher está no fundo de um lago, com pedras amarradas à cintura, se afogando. Não está ali por acidente; pelo contrário, está tentando se suicidar. Em um átimo, ela desiste do plano, se livra das pedras e com muito esforço, quase conseguindo atingir seu objetivo inicial, ela emerge da água e, se arrastando para o cais, sobrevive. Ao retornar para casa, ela finge normalidade quando o marido e as filhas retornam da escola com um novo bichinho de estimação, e todos almoçam como em qualquer outro dia comum. A mulher não revela (e nenhum deles percebe) o que transcorreu naquela manhã, no lago, e isso é o que mais a assusta: a normalidade que se segue, apesar da tentativa.
Assim começa o conto “Bem-vinda à comunidade”, a primeira das seis histórias reunidas em O bom mal, novo livro da argentina Samanta Schweblin que acaba de ser lançado pela editora Fósforo, com tradução de Livia Deorsola. Nessas seis histórias, Schweblin nos leva, de forma semelhante ao que fez em seu primeiro livro, Sete casas vazias (também lançado por aqui pela Fósforo), para ambientes familiares, domésticos, aparentemente tranquilos, onde o inquietante emerge pelas sombras, como uma presença que aponta para o que há de mais estranho na normalidade que é performada cotidianamente.
Nessa história que comecei a resumir, a protagonista, perdida nessa névoa entre a vida e a não-morte, tenta encontrar um sentido, uma direção que a guie nesse estranho momento de sua vida, e acaba encontrando ajuda em uma pessoa que, até então, lhe parecia ser a encarnação do estranho, do esquisito, do que ela, todos os dias, evitava ser. E a resposta que buscava talvez estivesse exatamente nisso, em se tornar o que evitava ser, em se jogar na criação de um fantasma para lhe assombrar todos os dias e mantê-la viva:
“Isso vai enchê-la de culpa, e se a culpa for forte o suficiente, vai precisar ficar para cuidar delas.” Ele me aperta o braço, me olha nos olhos. “Quer ficar deste lado do mundo? Quer evitar que elas sofram a perda da mãe?”
Os fantasmas habitam, também, os outros contos de O bom mal, sempre ancorados nessa linha inquietante, criados por uma culpa muito pessoal de cada um dos personagens.
William na janela talvez seja a história que apresenta esse conceito de forma mais literal. Nela, acompanhamos uma escritora em viagem a Shanghai para uma residência literária internacional enquanto um familiar importante espera notícias sérias de um médico. Dentre os artistas de diversos países, ela firma um laço mais forte com uma mulher irlandesa que, assim como ela, deixou alguém muito importante em casa, lidando com uma doença. Marcadas pela dor entre a escolha de se priorizarem e a culpa de deixarem sozinhos seus doentes, as duas compartilham as saudades e as dores da manifestação de seus próprios fantasmas pessoais, que, de certa forma, carregaram consigo, mesmo estando a milhares de quilômetros de distância de casa.
Já em O olho na garganta, minha história predileta do livro, uma criança narra o dia em que sofreu um acidente doméstico e como a culpa se manifestou especialmente sobre o pai, que cuidava dele quando suas vidas foram mudadas para sempre. Viajando por uma longa estrada entre Bariloche e Buenos Aires, a família é assombrada por um silêncio que demora anos para ser quebrado. E em A mulher de Atlántida, uma cabeleireira relembra o estranho verão em que ela e a irmã se transformaram em fantasmas para assombrar uma poeta que vivia isolada em uma casa na praia.
Nessas histórias, para além dos fantasmas pessoais, também assoma o peso da ausência. Cada um dos personagens de Schweblin nessa nova coletânea enfrenta o vazio deixado por um corpo, por uma pessoa que não está mais, ou que não se revela por inteiro. E é a busca pelo que estava ali, por descobrir o que ficou omitido, que carrega as tramas, como no caso das irmãs e da poeta, que se apresentam, umas às outras, sempre detrás de um disfarce:
No mar, entre uma onda e outra, nós a chamávamos de “nossa poeta”. Minha irmã disse que se soubéssemos seu nome e houvesse livros dela na casa, cairíamos na tentação de lê-la e julgá-la (…).
Dona de um estilo sedutor, onde o que se mostra e o que se esconde está sempre em jogo, Samanta Schweblin retorna ao conto com esse O bom mal com uma força impressionante. Aos que conhecem seu livro mas famoso, Pássaros na boca, esse daqui será uma ótima nova leva para degustar. Aos que ainda não conhecem sua obra, esse livro se apresenta como um ótimo convite para conhecer essa incrível autora argentina.
Título: O bom mal
Autora: Samanta Schweblin
Tradução: Livia Deorsola
Editora: Fósforo
Ano: 2025
Páginas: 160
Caderno de Exercícios
No exercício de hoje, quero que você, escritora, escritor, pense em uma ausência na sua vida. Pode ser a ausência de uma pessoa, de um lugar, de um animal, de um objeto ou, até, de um cheiro. O importante é que você pense em algo que ou não existe mais, ou não está mais no seu dia-a-dia.
Descreva essa coisa ausente o mais detalhadamente que puder. Agora, escreva uma história, poema ou crônica onde essa coisa ausente apareça. Pode ser um relato pessoal, um texto onde um personagem perde essa coisa ou, até, a encontra.
Boas escritas!
Antes de ir
Já falei de outro livro da Samanta Schweblin por aqui, caso te interesse:
O teatro do ver e do ser visto em Kentukis, de Samanta Schweblin
Imagine um bichinho de pelúcia motorizado caminhando pela sua casa: uma toupeira, um dragão, um panda. Ele te vê dormindo, entra com você no banheiro, senta do seu lado enquanto você come. Agora, imagine que os olhos desse bichinho são câmeras e que ele é controlado por um desconhecido do outro lado do mundo, em Dubai, na Islândia, na Austrália, você nã…
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso