Escrever é, na verdade, reescrever
O processo até a versão final de um texto é muito mais longo do que pode imaginar nossa vã filosofia.
Muito se engana quem pensa que colocar o último ponto em um texto de ficção significa, de fato, colocar o ponto final da última frase, no último parágrafo. Não, esse último ponto geralmente é colocado no meio do texto. Muitas vezes, esse último ponto é uma virgula, um travessão ou o acento grave em uma crase que passara despercebida até então. Na maioria das vezes, esse último ponto é uma palavra que acaba cortada. 9 em cada 10, essa palavra é um advérbio. Por isso, o leitor e leitora já terão percebido, colocar o último ponto não significa terminar a escrita da história. Ele significa terminar a reescrita.
Na newsletter de algumas semanas atrás, comentei sobre o processo da primeira escrita de uma história, um processo que chamei de A Aproximação da História. O leitor e a leitora que acompanharam o texto lembrarão que, ali, terminei o texto falando exatamente como essa aproximação é apenas o primeiro passo dado em direção à realização, no papel ou na tela, da história que temos na nossa cabeça. Mas o processo que vêm a seguir é muito mais longo, e, na minha opinião, é a parte mais deliciosa do ofício da escrita.
Libertar a história
Quando penso no processo de reescrita, costumo lembrar dessa frase de Michelangelo:
Como faço uma escultura? Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário.
É uma simplificação de todo um trabalho complexo e extremamente meticuloso? É. Pode ser que ele nunca tenha dito isso? Pode. Mas há verdade nisso, tanto quando olhamos para suas esculturas, quanto quando olhamos para a ficção. Michelangelo trabalhava suas esculturas a partir de blocos imensos de mármore. Essa era a matéria-prima de sua arte, sua tela, sua folha em branco. Com um cinzel, ele ia libertando as figuras humanas de dentro desse bloco. Primeiro, com lâminas grandes e lixas grossas, para conseguir os contornos iniciais, depois com lâminas menores, para dar mais detalhes, depois com ferramentas cada vez menores, mais suaves e mais precisas, até atingir o nível de detalhamento desejado na figura.
Escrever a primeira versão de um texto é esculpir o contorno da história nesse bloco de mármore que é a nossa imaginação. É delimitar a figura, a narrativa, mas ainda está longe de ser a sua versão final. Para isso, precisamos reescrever, reescrever, reescrever, usando ferramentas cada vez mais precisas, lâminas cada vez menores, cortando as partes que não são necessárias, trabalhando de forma cada vez mais aproximada e detalhista, na busca de colocar a história no papel como a lemos em nossa mente.

A maleabilidade do texto
Apesar da metáfora com o mármore ser boa visualmente, a escrita e o ato de reescrever um texto se assemelham muito mais com o trabalho com argila. As palavras são um meio de trabalho maleável. Diferente do mármore, onde se trabalha apenas por redução e corte, o texto permite mudanças significativas no rumo da história a partir da adição de novas palavras, de novos personagens e episódios, da troca de parágrafos inteiros de lugar, e da troca da voz narrativa e da sua posição em relação à história.
(As especificidades dessas mudanças são tantas, que renderiam um texto inteiro por si só, então me perdoem, leitores, leitoras, por não entrar em mais detalhes).
Reescrever um texto é um trabalho não necessariamente linear. Nessa etapa do ofício, os escritores e escritoras devem se permitir muita liberdade de experimentação com novas possibilidades (vida longa ao Ctrl+Z e ao histórico de revisões!), mantendo um foco preciso na história que querem contar enquanto testam alterações aqui e ali, cortam palavras, adicionam uma nova personagem, passam a narrativa do pretérito para o presente, entre tantas outras reescritas possíveis, vendo o que funciona melhor (ou não). Chegar à versão final é um trabalho árduo, e o texto pode mudar tanto ao longo do caminho que, comparado com a primeira versão, possa parecer algo completamente diferente, sem relação alguma.

Para não ficar só na teoria, cito alguns exemplos próprios, do meu livro, Cães Noturnos. O conto Dantino, por exemplo, surgiu como um poema. Essa foi a sua primeira versão, em versos, pois eu queria trabalhar a anáfora com a repetição da fórmula “Pobre Dantino” e criar uma sensação de recorrência com o verso final (que era diferente da frase final do conto). No momento da reescrita, porém, percebi que a coisa talvez funcionaria melhor em prosa, e, a partir daí o conto ganhou seu episódio central (e todas as suas ramificações) e se tornou algo que vai além de uma simples repetição lexical, mas ainda mantém a recorrência como conflito central.
De forma parecida, O Sexo dos Anjos surgiu como um relato de um imigrante que retorna ao Jardim do Éden em busca de uma vida melhor. Eu andava lendo muito sobre as crises migratórias dos anos recentes e fui influenciado pelo tema. Mas não queria fazer um texto abertamente político, de tom denunciador, e a comparação com a situação real aparecia de forma óbvia e muito rasa. No momento da reescrita, resolvi mudar de foco: troquei o ponto de vista colado no narrador, em sua vida pregressa ao episódio no Éden, e o joguei no meio da orgia de anjos que era o clímax da primeira versão. A partir daí, pude enxergar uma possibilidade mais interessante de narrativa: recontar a história bíblica de Adão e Eva da forma menos sacra o possível. E prefiro muito mais essa versão.
E foi assim, também, com Noite dos Loucos. Tive a inspiração enquanto esperava a revisão do meu antigo carro. Estava em um bairro de São Paulo que raramente frequento, quando vi um morador de rua com um chapéu cata ovo passar pela calçada andando devagar e falando sozinho. Não identifiquei suas palavras, mas, ali, apareceram os contornos mais brutos do personagem Boininha na minha mente. O narrador, que o observa como um mistério, tinha muito da minha curiosidade naquele momento. A primeira versão era quase um relato de observação entre dois personagens, focando no que um não sabe sobre o outro, e ainda não envolvia lobisomens nem nada. Isso veio apenas no momento da reescrita, quando lembrei das histórias que minha mãe e meus tios me contavam de suas infâncias em Periperi e em Pojuca, na Bahia, de um grupo de loucos que caminhavam nas ruas de noite. A partir daí, a coisa foi tomando a forma que foi publicada no livro (com a cena do bebê vindo da minha imaginação, não de um episódio real!).
O tempo da reescrita
Mas algo que é importante sempre lembrar, é que a reescrita é um processo lento, igualmente meditativo e ativo. É necessário avaliar profundamente cada novo passo, cada mudança, e perceber se há uma melhora ou uma piora. E isso nem sempre acontece instantaneamente. Entre a finalização da primeira versão e a primeira reescrita, bem como após cada mudança grande, o texto precisa descansar, como um bolo antes de ser desenformado. É a famosa gaveta dos escritores, o terreno fértil onde, longe da atenção imediata, a história pode germinar e maturar para além do imediatismo de ser posta no papel.
Essa gaveta é um local para onde o texto não só pode, como deve retornar diversas vezes ao longo do processo de reescrita. Até chegar a sua versão final, o texto provavelmente passará por muitas outras versões, e aquele gif do vaso sendo feito, aplicado à escrita, deve ser enxergado como uma versão acelerada de algo que pode levar meses, anos, décadas, para ser concluído.

A pressa é a maior inimiga dos escritores e das escritoras. O texto precisa ser trabalhado, maturado, e os escritores também precisam passar por um amadurecimento nesse processo. A reescrita de um texto é, também, uma reescrita de si. Não lembro quem disse isso, mas é necessário se tornar o escritor, a escritora, que consegue contar aquela história na nossa mente.
Entre uma versão e outra do texto, o autor, a autora, costuma pesquisar sobre o tema, buscar novas referências, dominar novas técnicas narrativas para aplicar sobre esse ou outros textos. Nesse meio tempo, muita coisa muda na sua visão de mundo, na sua visão sobre o texto. Aos poucos, com a prática, esse processo vai se tornando mais normalizado, e o tempo da escrita e da reescrita já acabam sendo levados em consideração na hora em que surge a ideia.
Pelo menos para mim, reescrever é a parte mais íntima e mais divertida do processo. Nunca deixa de ser algo animador me ver diante de um banquete de possibilidades a serem testadas no papel, de uma nova terra a ser descoberta e explorada textualmente, de uma nova história a ser libertada do bloco de mármore à minha frente. O tempo que uma história leva para ser concluída nunca é tempo desperdiçado. Pelo contrário, é tempo ganho na busca da história que queremos contar, e do escritor ou escritora que desejamos ser.
Eu amei a reflexão, Ivan! Ultimamente, tenho pensado bastante sobre o tempo da escrita e o que você trouxe ressoou bastante por aqui. Obrigada por esta leitura!
O aperfeiçoamento é longo e demorado, mas igualmente revigorante