Como Nascem os Fantasmas?
Em seu novo livro, Verena Cavalcante cria um aterrorizante romance de formação ambientado no Brasil dos anos 90
Para além das brincadeiras, das amizades e das férias em família na praia, a infância é uma época da vida marcada pelo medo. Seja nas crenças que somos ensinados à guisa de lições, como não sair no frio depois do banho para não ficar com a cara paralisada, não colocar a mão para fora da janela do carro para não tê-la arrancada, ou tomar cuidado com as linhas de pipa com cerol que decapitam motoqueiros; seja nas histórias que ouvimos e somos inocentes demais para acreditar e temer, como as de fantasmas no banheiro, de lobisomens e chupacabras rondando na escuridão, ou do amigo de um amigo que assistiu a uma fita cassete assassina; seja no fato de sermos muito vulneráveis e existirem predadores à ronda, buscando vítimas que se desgarram do bando. E a escritora paulista Verena Cavalcante sabe muito bem explorar esse terror muito específico da infância em sua obra.
Em Inventário de Predadores Domésticos, lançado pela Darkside em 2021, a autora trabalhou esse terror muito real dos predadores e dos traumas familiares em 26 contos. Mas, em seu novo romance, Como Nascem os Fantasmas, lançado pela Suma, o terror da infância parte desse ponto para mergulhar em suas veredas mais sobrenaturais.
O romance se passa nos anos 90 e conta a história de Beatriz, menina de 11 anos órfã de mãe que cresce na casa dos avós em uma cidade do interior paulista, rodeada de lendas sobre fantasmas e de programas sensacionalistas gritando sobre assassinos e maníacos a solta. O avô, um ex-policial que trabalhou a favor da ditatura capturando e torturando pessoas, não passa de um corpo vegetando em sua cama quando a história abre. A avó, Dona Divina, ou Didi, é uma médium muito requisitada pelos vivos e pelos mortos, encarnando fantasmas de pessoas que sofreram mortes violentas na cidade, e recebendo pedidos de contato com o outro lado pelos que os buscam. Já a mãe de Beatriz morreu por complicações no seu parto, e é lembrada quase como uma santa pela avó, que cultiva suas fotos como relíquias de um passado sagrado e perdido. Do pai, sabe-se muito pouco ou quase nada.
Para Beatriz, que enfrenta a confusa época da pré-adolescência, sentindo as mudanças corporais e comportamentais iniciando sua fase de ebulição, a avó representa um objeto de fascínio. Por conta de suas habilidades, a avó é vista como alguém especial pela cidade e pela neta, alguém que se destaca, que possui um propósito no mundo, uma missão a ser realizada, e um poder único. E é exatamente esse poder que Beatriz passa a desejar para si.
Ao meu redor, tudo era magia e morte. Até as formigas, que antes passavam despercebidas em sua pequeneza obscura, construindo vulcões avermelhados no quintal, pintalgando o açucareiro ou levando folhas de jabuticaba nas costas, haviam assumido uma nova faceta — maculavam o solo com patinhas de sangue. Atenta aos sinais do sobrenatural, à espera dos indícios de uma mediunidade hereditária que se apresentasse, caprichosa, a contragosto de minha avó, fiquei aguardando, presa na exúvia do passado. (pg. 57)
Acontece que os poderes mediúnicos da avó estão ligados à figura da Mulher Vermelha, uma assombração local que, para Beatriz, é mais do que real. Fantasma de uma mulher assassinada pelo marido nos tempos do Brasil colônia, ela assombra o casarão dos Morano, o mesmo local onde a avó realiza consultas e trabalhos espirituais. Após presenciar como Didi consegue incorporar o fantasma de uma menina desaparecida e ajudar tanto nas buscas pelo seu cadáver quanto na prisão de seu assassino, Beatriz decide que fará de tudo para poder ter esse poder para si.
Sua busca, porém, a levará a descobrir tanto as verdades por trás da Mulher de Vermelho quanto à verdade do que o avô fez em vida e do que levou à morte da mãe. E, chegando ao fundo do buraco que cava para si, ela encontra não apenas os fantasmas que busca, mas os corpos que lhe deram origem.
Não contei a ninguém sobre as vozes que balbuciavam em minha cabeça durante o sono, me mostrando ocos de árvores recheados de olhos murchos, unhas quebradas e umbigos ressequidos. Guardei para mim os sonhos em que caminhava por orfanatos onde carrapatos grandes como grãos-de-bico invadiam os berços e se colavam à pee de bebês moribundos, formando um suéter de parasitas bebedores de sangue. Escondi as visões de matas encarnadas, bezerros e cordeiros de duas cabeças, mulheres parindo tumores com fios de cabelos e dentes. (pg. 94)
Escrito numa prosa muito bem trabalhada, que mescla imagens terríveis com frases de uma beleza ímpar, Como Nascem os Fantasmas é um daqueles romances que têm coragem de fazer algo novo, aterrorizante e sem piedade. O mundo criado por Verena Cavalcante nessa cidade, os personagens que a habitam, e toda a história que Beatriz escreve para si em sua busca íntima, se combinam de forma hipnótica, conjurando, por si só, uma assombração, um fantasma que, impresso nas páginas, consegue atravessar o portal da ficção e se alocar em nossas mentes, fazendo o que só uma boa história consegue fazer: nos provocar, nos incomodar e, com um leve toque de mágica, nos levar de volta ao passado, quando éramos crianças e os terrores do mundo estavam sempre ao nosso redor, nos cercando na escuridão, prontos para a emboscada.
Título: Como Nascem os Fantasmas
Autora: Verena Cavalcante
Editora: Darkside
Ano: 2025
Páginas: 152
Caderno de Exercícios
Inspirado no mundo de crenças e lendas dos anos 90 tão bem trabalhado no romance de Verena Cavalcante, o exercício de hoje vai te fazer trabalhar a memória. Escolha alguma lenda, algum mistério, alguma notícia escabrosa que você lembra que te assustava na infância e escreva uma história onde os aspectos mais fantasiosos, mais místicos dessa história se tornam verdade para seus personagens.
Boas escritas!
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso
Que resenha maravilhosa! Obrigada pela leitura tão profunda e sensível. Foi um prazer ser lida por você. ❤️