Cada um tem um labirinto secreto dentro de si
Todos os Nomes, de José Saramago, confronta a individualidade e a burocracia em uma trama kafkiana
(…) a pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós, por baixo dela nem nós próprios conseguimos saber quem somos, (…)
Essa frase, pescada dos longos parágrafos de José Saramago em seu romance Todos os Nomes, resume muito bem o conflito e a provocação centrais por trás das 269 páginas magistralmente compostas pelo vencedor do Nobel em 1997. Após explorar o coletivo ao imaginar o colapso da sociedade e sua possível salvação através da empatia em Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago se dedicou, dessa vez, a olhar para o interior, para o que nos torna seres individuais, compondo uma trama intimista que explora como, apesar de uma sociedade burocrática que teima em nos resumir a números, seguimos sendo, cada um, ser próprio.
Todos os Nomes acompanha, em terceira pessoa, o Sr. José, funcionário da Conservatória Geral, instituição pública onde se armazenam todos os registros de mortes e nascimentos de um país sem nome. Os registros são feitos em fichas de papel, em um processo burocrático do qual o Sr. José participa como escrivão e arquivista. Sua dedicação a essas funções é tamanha que mora em uma casa anexa ao prédio da Conservatória Geral, com entrada pelos fundos, se tornando, ele próprio, um apêndice de seu trabalho.
A partir dessa dedicação, o romance começa, logo em suas primeiras páginas a tomar ares absurdos, kafkianos. Tudo parte do prédio da Conservatória Geral, imponente, quase um personagem por si só, e que, além de uma hierarquia interna ferrenha, possui um grande problema logístico: onde guardar as fichas de todos os mortos. A solução encontrada é uma constante reforma que aumenta o espaço designado a essas fichas. Mas elas são tantas que a sessão dedicada somente às fichas dos mortos se tornou um lugar perigosíssimo, um labirinto de estantes e fichas que ameaçam desabar, e onde se pode facilmente se perder caso não se utilize do proverbial “fio de Ariadne”. Na lenda, é esse fio que permite a Teseu enfrentar o labirinto e chegar ao Minotauro que está no centro. Aqui, porém, não há minotauros, apenas o labirinto.
Nesse estranho cenário, ficamos sabendo do hobby do Sr. José, que coleciona recortes de matérias sobre pessoas famosas, organizando-os em pastas, pois gosta de acompanhar as vidas dessas pessoas notáveis, seus namoros, casamentos, conquistas e derrotas. Um dia, porém, decide colocar nessas pastas, também, as informações das fichas dessas pessoas na Conservatória Geral. Colado a essas fichas, vem a ficha de uma mulher desconhecida. Uma anônima, como ele, da qual o Sr. José não sabe nada além da data de nascimento. Em contraste, sabe tanto dessas celebridades que jamais chegará a ver senão em fotos.
Isso o joga numa busca obsessiva tentando descobrir mais sobre a vida dessa “mulher desconhecida”, como passa a ser chamada por ele. Quem é ela? Como é? O que fez da vida? Que decisões tomou? Se arrependeu de alguma? É feliz? Triste?
Usando de uma estrutura policialesca que o leva a cometer infrações, entrevistar conhecidos da mulher em busca de respostas, e (algo novo para ele) matar trabalho, Saramago narra as reviravoltas dessa obsessão, levando o Sr. José a descobrir segredos da própria Conservatória Geral e de funcionários que possuem hobbies semelhantes que podem envolver, também, ele próprio.
Não poderíamos ser todos famosos, Ainda bem para si, imagine a sua colecção com o tamanho da Conservatória Geral, Teria de ser muito maior, à Conservatória só interessa saber quando nascemos, quando morremos, e pouco mais, Se nos casámos, se nos divorciámos, se ficámos viúvos, se tornámos a casar, à Conservatória é indiferente se, no meio de tudo isso, fomos felizes ou infelizes, A felicidade e a infelicidade são como as pessoas famosas, tanto vêm como vão, o pior que tem a Conservatória Geral é não querer saber quem somos, para ela não passamos de um papel com uns quantos nomes e umas quantas datas, (…)
Todos os Nomes é narrado de forma peculiar (e não estou falando da pontuação do autor), pois, em um romance com o título que possui, apenas um personagem é, de fato, nomeado: o Sr. José. Semelhante ao realizado em Ensaio Sobre a Cegueira, todos os outros personagens são caracterizados ou por seus trabalhos, ou por alguma característica que os resume. Aqui, isso tem o efeito de somar ao tema da narrativa, elevando o livro de uma busca detetivesca a uma profunda reflexão sobre o que significam as vidas que cada um leva: a vida pública e a vida privada. Independente do quanto se esconda ou se revele, estão todos, o tempo, vendo e sendo vistos por outros. Mas, o que, de fato, se pode conhecer de alguém?
Voltando ao trecho que abre essa resenha, Saramago parece nos perguntar se o que apresentamos para o mundo é o mesmo que existe dentro de nós mesmos. E se é possível nos conhecermos tanto quanto acreditamos conhecer o outro. Mas, se cada um apresenta algo diferente do que há dentro de si, o quanto é possível, realmente, saber das vidas alheias? E por que nos importamos tanto?
Todos os Nomes pode não oferecer uma resposta, mas seus questionamentos com certeza te darão um fio de Ariadne para enfrentar esses labirintos.
Livro: Todos os Nomes
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1997
Páginas: 269
Esse texto foi originalmente publicado no Porco Espinho, em 09 de março de 2022.
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Caderno de exercícios
Assim como Saramago costuma fazer, o exercício de hoje parte de uma proposta simples (o que não significa que o resultado não será complexo): Escreva um conto, crônica ou poema onde nenhum personagem é nomeado, mas, sim, definido por uma única característica (como seu emprego, a cor do cabelo, a altura etc.). Essa característica deve ser, de alguma forma, relevante à narrativa, e não um mero detalhe.
Boas escritas!
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso.
Nossa, preciso muito ler esse livro agora 🤦🏻♀️
Ivan, eu terminei de ler esse livro nesse final de semana. Eu estava no começo quando chegou sua Newsletter e deixei arquivada aqui para ler só depois de terminar (..rsrs). Fui ler esse do Saramago porque me indicaram, dizendo que tem muita relação com um romance/novela que estou escrevendo. Gostei, mas não amei. Pra mim, "A Caverna" é o melhor dentre os que li (ainda não li tudo). Achei interessante sua leitura sobre a relação da formação da individualidade, eu li mais pela chave da burocracia e consequente alienação (bem no estilo kafkiano) mesmo, tanto do trabalho como da vida (ou da ausência dela) fora do trabalho.
Agora, depois do comentário do Tiago Germano, vou ler também o Mário Benedetti...rsrs