Queridos leitores, queridas leitoras, antes de iniciar essa crônica, queria pedir para vocês ficarem até o fim do texto. Tenho algo especial para dizer depois do ponto final.
Sempre tive gosto pelos livros marcados. Não necessariamente grifados (esses também), mas marcados. Livros que foram manuseados, que foram lidos, que foram carregados de lá para cá, de cá para lá, que viram pelo menos um par de olhos, que sentiram pelo menos um par de mãos, que caíram no chão mais de uma vez. Livros usados, livros vividos.
Quando lemos um livro físico, é impossível não deixar marcas, pegadas, no objeto. As páginas se curvam, a lombada quebra, os dedos raspam e (quem nunca?) mancham de leve. Gosto, especialmente ao ler catataus, de ir observando como as páginas vão se reconfigurando, deixando de ser aquele monolito assustador para se tornarem mais onduladas, separadas.

Um pequeno prazer: o momento em que, pela primeira vez, a coluna de um catatau cede à abertura das páginas. As ranhuras brancas vão se materializando na parte externa até que, cléc, a coluna quebra, geralmente ao redor da primeira centena de páginas. Lá pela 150, cléc, de novo. 210: cléc. 274: cléc. E assim em diante, quanto mais páginas, mais quebras tatuam a lateral do livro.
Um outro prazer: comprar um catatau em um sebo e deixar que as quebras já existentes na coluna guiem sua forma de abrir o livro. Deixar que a mão de outro leitor, de outra leitora, te mostre como segurar aquele volume, como dobrá-lo, em que posições lê-lo. É uma história de uma leitura ali, registrada sem palavras.
Um livro lido é impossível de esconder.
Mas há, também, as marcas que os livros recebem não da leitura, mas do acaso.
Nos anos 90, meus pais mantiveram uma grande estante de madeira escura como parte da decoração na sala. Nela, ficavam álbuns de fotos, discos de vinil, um aparelho de som que mais parecia um painel de comando de uma nave retrofuturista, livros e, peça chave do conjunto: um aquário. Tenho vagas lembranças dessa peça de decoração, que acabou substituída por uma grande estante branca de madeira, mas, no final dessa década e no começo dos anos 2000, toda vez que eu pegava um dos livros deles nessa nova peça, uma voz surgia no meu ombro, quase sempre a da minha mãe: “esse é um dos que ficaram manchados quando o aquário vazou, lembra?”. Não lembrava, mas, ali, na linha escura e sinuosa que desciam em diagonal pela capa e pelas páginas, pela textura esturricada das páginas, eu conseguia imaginar a cena, conseguia ver os livros secando ao sol, ao ventilador.
Eu mesmo já derrubei copos de água em diversos livros da minha própria estante, e aprendi, na prática, que quanto mais rápido se atua, menos marcas se fixam. Não é o caso, porém, com cafés e outras bebidas. Meu exemplar de O Romance Luminoso, de Mario Levrero, está para sempre tatuado com o café que um Jack Russell me fez derrubar ao pedir para ser passeado com entusiasmo demais. Hoje, acho que a mancha combina com a história, que não passa de um grande diário de alguém que não consegue escrever um livro e procrastina de todas as formas possíveis, por 500 páginas.
Há marcas, porém, que não me lembram de coisas boas. As marcas da fuligem, por exemplo, que alguns dos meus livros ainda mantém. Por mais que tenha limpado e limpado e limpado, as manchas escuras nas capas, lombadas e no corte não me deixam esquecer do incêndio. Escaparam, todos os que moravam ali escapamos com vida, mas as cicatrizes ficam. Não quero elaborar sobre isso. Ainda não.




Ontem recebi um email da Laranja Original, editora pela qual publiquei meu livro de contos. Era um aviso aos autores. Por conta das chuvas fora do normal que estavam caindo em São Paulo, a sede da editora, localizada na Vila Madalena, não conseguiu escapar dos alagamentos. Diversos livros foram afetados. Dentre eles, os últimos exemplares de Cães Noturnos. Dezesseis, no total. O fim da tiragem de 200 que, após um ano e meio de trabalho duro de divulgação, estava prestes a esgotar.
Antes que meu coração despencasse, o email confirmava: os danos foram leves, não estragavam o texto, mas eram visíveis na capa. A editora não estava em condições de mantê-los ali, eu gostaria de retirá-los?
Gostaria, sim. E foi desse jeito que, na tarde de ontem, minha sala de estar foi tomada por Cães Noturnos esparramados, secando na brisa de um ventilador incansável.
Agimos rápido, e o papel é sempre mais resistente do que achamos, fazendo com que os livros ainda sigam preservados. As marcas seguirão neles, lembrança da água, seja na linha sinuosa tatuada na capa e na contracapa, seja nas folhas entortadas e donas de uma nova textura. Mas o texto, os contos, continuam como estavam antes, prontos para serem lidos. A única diferença é que, para estes exemplares, haverá uma nova história a ser contada, uma que não está escrita, mas que está ali, marcada no livro.
Um pedido de ajuda
Obrigado por chegarem até aqui, leitoras, leitores. Como viram na crônica, estou com os últimos exemplares da primeira tiragem do meu livro de contos, Cães Noturnos, aqui em casa. Todos eles já estão secos e salvos da enchente e da umidade. As marcas que ficaram são capas manchadas, um leve enrugado nas páginas, um ângulo de abertura maior da lombada. O miolo e o corte seguem completamente íntegros, sem danos ao texto.




Assim, se você tiver interesse nos meus contos e puder me ajudar, estou vendendo esses exemplares a um preço bem reduzido, para fazê-los circularem e encontrarem uma nova estante para chamar de lar, um novo par de olhos disposto a ler suas histórias. Cada exemplar pode ser adquirido por R$25,00, com frete grátis e envio para todo o Brasil. E, claro, cada um deles vai com uma dedicatória especial e milhões de agradecimentos!
Aqui vai uma breve sinopse:
Cães Noturnos é um livro de contos que gira ao redor dos temas do desejo, da loucura e da morte. Os contos passeiam por diferentes gêneros e ignoram as barreiras entre realismo e fantástico, mas estão centrados, sempre, no que há de humano e de animalesco nos personagens. São vinte contos, separados em duas partes. Cada conto de uma possui correspondência direta com um conto da outra. Correspondências temáticas, de locação, de objetos etc., se assemelhando às estruturas inconscientes que se formam entre memórias após traumas. Formam, assim, uma estrutura espelhada e circular de leitura.
Você pode responder esse email, me mandar mensagem no Substack, no Instagram, ou mandar um email para ivan.nery.cardoso@gmail.com com o assunto “Cães Noturnos”, e eu respondo rapidão.
Muito obrigado!
Caderno de Exercícios
No exercício de hoje, eu quero que você vá até a sua estante e pegue um livro que tenha comprado de sebo. Um livro que tenha alguma marca que o torne único. Caso não tenha nenhum, vá até um sebo próximo da sua casa e dê uma olhada nos que eles têm por lá.
Agora, escreva um conto ou crônica sobre essas marcas do livro.
Boas escritas!
Outras formas de ajudar o autor
Compre um livro no meu sebo virtual.
Contrate uma leitura crítica do seu livro ivan.nery.cardoso@gmail.com
Me pague um cafezinho, na chave pix: ivan.nery.cardoso@gmail.com
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Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso
Belíssimo texto, gosto muito da sua maneira de enxergar a vida, Ivan!
que delícia de ler