A literatura e seus experimentos
Duas micro resenhas sobre livros que experimentam com a forma de organizar suas histórias
Literatura experimental. Só de falar essas duas palavras, metade dos leitores e das leitoras já deve ter torcido o nariz. E tudo bem, eu entendo o desgosto que esse adjetivo pode causar, ainda mais ao lado desse substantivo tão carregado de significado: literatura. Mas, caso ainda esteja aqui, comigo, leitor, leitora, vamos em frente.
Em certo sentido reducionista, toda obra escrita por um ser humano tem algo de experimental. Afinal, a não ser que um autor ou uma autora estejam copiando algum texto palavra por palavra, sem alteração, toda obra possui algo de novo, algo próprio, mesmo que seja mínimo, e isso já poderia ser considerado um novo experimento na linguagem, na narrativa. Mas, repito: essa é uma visão reducionista e algo idealista. A literatura realmente experimental é aquela que, desde a sua concepção, pretende quebrar alguma convenção do texto escrito, seja em prosa, verso, ou qualquer outra possibilidade de registro, experimentando uma forma nova de contar uma história (ou muitas histórias). Dentre as muitas convenções possíveis de serem quebradas, alteradas, invertidas, a que mais me interessa é o experimento com a forma.
A forma de um livro é como o texto se apresenta a quem o lê, como é organizado. Pense em um romance, em um livro de contos, em uma coletânea de poema. Como o texto aparece para você, como ele lhe é apresentado? Há uma convenção da leitura, da esquerda para a direita, uma página depois da outra, em ordem numérica crescente. O texto em prosa se organiza em frases, parágrafos, capítulos; a poesia, em versos, estrofes; etc. Indo além, especialmente na prosa, a narrativa nos é apresentada através da voz de um ou mais narradores, e se apresenta de forma cronológica e acumulativa. Cada novo bloco de texto se constrói em cima do anterior, e assim em diante, até o final.
Essa costuma ser a forma mais convencional, e nem prestamos muita atenção nela, a não ser quando é quebrada. E, a partir daí, as possibilidades de criação são imensas. Cada autor, cada autora, que se propor a reorganizar o texto de outra forma, estará experimentando algo novo.
Abaixo, comento sobre dois livros que li recentemente e que brincam bastante com isso.
Uma flecha, muitas histórias
O primeiro é Flecha, de Matilde Campilho, lançado em 2022 pela Editora 34, uma coletânea de mais de 200 micro histórias, algumas tendo apenas uma única frase, outras se estendendo apenas até a página seguinte. O que une esse conjunto é a forma que a autora escolheu para organizar seu livro.
Nesse livro, Matilde Campilho imagina uma flecha, atirada desde o começo dos tempos, e que segue cortando os ares do mundo até hoje. Por onde passa, essa flecha primordial atravessa o caminho de pessoas, animais, pinturas, e objetos variados. Desse rápido encontro, coleta as pequenas narrativas que compõem a coletânea. Veja esse curtíssimo exemplo:
Um equilibrista estica uma corda de aço entre uma árvore e outra.
(pg. 50)
Como nos conta no prefácio à edição brasileira, Campilho se inspirou em personagens históricos e anônimos, criou écfrases a partir de pinturas famosas (e não tão famosas assim), e nos apresenta os resultados de seus experimentos de forma aparentemente aleatória, e não cronológica. Assim, o tempo cronológico se dobra no livro, permitindo que príncipes e imperadores da antiguidade dividam espaço com os primeiros seres humanos reunidos em volta de uma fogueira, com pessoas do nosso tempo que tiram as meias no meio da noite para poderem dormir confortáveis, com coelhos que fogem de predadores na floresta, e com qualquer ser ou objeto que carregue, em uma breve ação, a semente de uma história:
Um cachorro preto coloca a força do seu corpo inteiro na jugular, tentando escapar da corda que há quatro dias lhe ata o pescoço ao portão de ferro.
(pg. 71)
O efeito que essa escolha causa é a de uma avalanche da História; uma compreensão de que o mundo, e todos os seus seres, compartilham características desde seu surgimento, e que, mesmo que a forma se altere, estaremos sempre produzindo e contando nossas próprias histórias. E, o que é mais interessante: seja lendo de forma tradicional, da primeira à última micro história, ou abrindo as páginas aleatoriamente e lendo as histórias que se abrem ali, o efeito não se perde, e novos significados vão se mostrando pelas relações e conexões que cada leitor, cada leitora, cria em cima do texto.
Três histórias, muitos fragmentos
O segundo livro é Museu de Arte Efêmera, de Eduardo A. A. Almeida, lançado esse ano pela Laranja Original. Em seu subtítulo, o livro se apresenta como “um tríptico”, e, de fato, as três histórias que o compõem carregam um efeito de serem partes de um todo, mesmo que independentes uma da outra.
Aqui, Eduardo A. A. Almeida escolheu a fragmentação como forma, e construiu suas histórias em cima disso. Um de seus personagens encapsula bem o procedimento que parece ter sido adotado nesses ótimos contos:
Não peço uma grande narrativa / mas um apanhado de detritos / rastros e restos menores, com alguma sensibilidade / e um traço de ética.
(pg. 124)
Luminescências, o conto que abre esse tríptico já nos ambienta na tônica de seu Museu de Arte Efêmera. A história nos é apresentada em capítulos curtos, contendo cenas capturadas por câmeras de segurança e projetadas em monitores. Cada cena é um curto episódio que se inicia de forma comum, mas que sempre descamba para o absurdo. Em um dos monitores, acompanhamos um homem de óculos escuros que, deitado em um divã, narra para diferentes psicólogos um mesmo episódio da infância, mas, a cada vez, altera algum detalhe (ou alguns detalhes). Em outro, uma mulher percorre as ruas de uma cidade completamente nua, segurando apenas uma bolsa preta. E, no terceiro, um homem tenta pedir comida em um restaurante que parece não ter comida alguma. As três histórias, apesar de inicialmente separadas, são ancoradas, cada uma, em elementos que ganham importância a cada vez que reaparecem, mas, aos poucos, vemos como até esse sentido que criamos em nossa cabeça não resiste ao absurdo que o conto toma, nos forçando, ao final, a repensar tudo o que foi lido até ali.
De forma semelhante, Eterno Retorno, segundo conto do livro, usa a fragmentação para criar a ideia de um tempo circular, onde tudo o que já aconteceu acontecerá de novo, e de novo, e de novo. Também separado em capítulos curtos, vemos a narrativa de um analista de seguros que, ironicamente, se vê envolvido em um acidente de carro fatal, e acorda no que parece ser uma outra dimensão (ou não). Os capítulos se dividem nesse antes e depois, mas sem seguir a ordem cronológica, reforçando, pela nova ordem temporal criada na organização do autor, a inevitabilidade do acontecido ao mostrar como não há nada que possa ser feito, nem antes, nem depois.
E, fechando o livro, o conto que dá título ao livro une os elementos de tudo o que apareceu até aqui para, de fato, nos apresentar o Museu de Arte Efêmera, prédio onde Lethe, (rio da mitologia grega que apaga a memória de quem bebe de suas águas), e Zakhor (palavra em iídiche para “lembrar”), escutam as tragédias das vidas de seus visitantes e tentam convencê-los a esquecê-las para sempre e se livrarem da culpa, ou a lembrarem delas, para que não se repitam. Aqui, Eduardo A. A. Almeida usa muitos recursos do teatro e da poesia, conferindo a esse conto uma aura de tragédia grega, onde os destinos são inevitáveis, mas a vontade humana de querer mudar o passado é sempre maior, deixando um gosto agridoce na boca e aquela dorzinha do desejo não realizado.
Muitas peças, ainda mais histórias
O efeito dessas quebras realizadas na forma, tanto por Campilho quanto por Almeida, é, a princípio, o de espanto. Ao abrir as páginas, o leitor, a leitora, se depara com um procedimento novo, algo que exigirá sua participação ativa na leitura. Assim que se vira a primeira página, o jogo se inicia: os autores dão as peças, quem lê monta o quebra-cabeça.
Mas aí está o melhor desses dois livros: não há uma imagem certa a ser montada, reproduzida na parte de trás da caixa. A imagem que se forma será um pouco diferente, a cada vez. E isso é o que eu mais gosto de livros que escolhem experimentar com novas formas de contar uma história; eles não se deixam ser lidos passivamente. Pelo contrário, eles nos leem tanto quanto nós os lemos, num jogo duplo de criação e interpretação.
Os significados que apresentei aqui, para cada um dos livros, foram apenas as minhas interpretações. Portanto, te pergunto: quais serão as suas?
Caderno de exercícios
No exercício de hoje, leitor, leitora, escritor, escritora, eu te proponho um jogo com a fragmentação. Escreva uma história nova, ou pegue uma que já escreveu, e que esteja em ordem cronológica. Agora separe-a em trechos, do começo ao fim. Numere cada um dos trechos e sorteie esses números para criar uma nova ordem de leitura da história.
O que você nota de diferente nessa história? Há algum efeito ou interpretação nova que surge? Quais possibilidades parecem se abrir?
Me conte, se quiser, o resultado nos comentários. E, se souber de outros livros que brincam com a forma, me conte também! Estou sempre em busca de novas referências.
Até a próxima,
Ivan Nery Cardoso
obrigada pelas dicas de leitura, adorei! =D