A aproximação da história
Um pouco sobre o processo criativo de escrever histórias e ter ideias originais.
Acontece de supetão, sempre como uma surpresa. Durante uma reunião, enquanto lavo a louça, escutando um podcast, quando estou quase dormindo, enquanto corro contra uma deadline, ou enquanto tento avançar em um conto. Sempre quando preciso pensar em outra coisa, ou quando prefiro não pensar em nada, ela vem: a ideia.
Pode ser uma cena, pode ser a contradição de uma personagem, pode ser até mesmo um enredo completamente detalhado que enganosamente parece pronto para ir ao papel. A ideia para uma história pode surgir a partir das maneiras mais variadas, e a partir dos detalhes mais esdrúxulos, mas quando vem, vem com força. Colocá-la no papel se torna um imperativo quase fisiológico, com o risco dela ou se perder no éter, ou permanecer por tanto tempo que se torne outra coisa, algo pior, algo mais clichê.
Porque as ideias têm disso: elas não permanecem as mesmas por muito tempo. É necessário, como um fotógrafo de aparições sobrenaturais, tentar registrá-la nas folhas de um caderno (se estiver à mão), ou em qualquer superfície ou bloco de notas (físico ou digital). E digo fotógrafo de aparições sobrenaturais porque o que registro raramente é algo sólido, concreto, uma prova contundente dessa mística ideia que me foi revelada em sonho ou nos corredores assombrados da minha mente ociosa. Não, os registros das ideias, ironicamente, dão apenas a ideia do que seria a ideia caso desenvolvida.
Ainda falta a parte mais importante: escrever (o que, como bem definiu Marguerite Duras, tem algo disso).
Começa, então, o que chamo de “a aproximação da história”. Existem escritores e escritoras mais metódicos, que se dedicam à escrita de uma história única, sentam em suas cadeiras e se dedicam única e exclusivamente à história que veio dessa ideia. Eu não sou um desses escritores. Meu processo de escrita é caótico, movido mais pela inexistência da história do que por sua existência.
Explico: meus contos nunca vêm prontos. As ideias que registro são trechos, são possibilidades, pedaços de uma máquina sem manual de instrução. Meus cadernos são escritos de forma contínua e desigual, com breves separações com a data daquela entrada e um possível nome para aquele projeto. Resumindo: é uma bagunça. Mas uma bagunça criativa. Após registrar uma ideia, costuma vir um período em que ela fica ali, boiando naquela panela de ideias enquanto meu cérebro vai se ocupar de outras tarefas (ou de outras histórias). E, boiando, ela começa a tomar forma, a amadurecer, a criar raízes e se conectar com outras entradas neste ou em outros cadernos de anotações.

Mais de uma vez, me surpreendi ao finalmente retornar a uma dessas possibilidades de história e, ao relê-la, descobrir que se encaixou com outras três ou quatro e começou a formar um conto coerente. Um personagem aqui, outro ali, um conflito, uma voz para narrar e um cenário: pronto, temos algo para começar a escrever. E lá vou eu para o caderno de escrita (prefiro sempre trabalhar à mão), descobrir o que escreveria, caso escrevesse.
O resultado, já não me surpreendo mais, é sempre diferente do emaranhado que puxei das folhas. Escrever, de fato colocar no papel, começar da primeira frase, é como testar se a máquina funciona, se a coisa roda. Spoiler: quase nunca roda. É necessário um processo manual, então, de desembaralhar esse emaranhado, notar o que realmente se encaixa, o que é de fato conexão e o que é mera proximidade, e, então, começar a testar outras possibilidades. Tirar essa personagem aqui e substituir pela personagem nesta outra anotação. Mudar o cenário do passado para um futuro próximo. Tentar outro narrador. Trocar o conflito. Exagerar esse detalhe. Cortar essa frase. Mexer, mudar, quebrar, trocar. Descansar. Deixar de lado. Voltar depois.
O processo até chegar à primeira versão dessa máquina é longo. É como uma caçada, mas prefiro chamar de aproximação. É necessário encontrar a história, farejá-la na mata densa das ideias, encontrar os personagens, o narrador, o tempo da narrativa. E, no meio do caminho, outras possibilidades vão surgindo, histórias potenciais, caminhos que se bifurcam, veredas que se unem. E, a melhor parte: não é como um labirinto, onde existem caminhos falsos e becos sem saída, mas há um objetivo no fim, um local certo e fixo a ser atingido.
Não, a história a que se chega é um caminho sempre novo, formado através desses muitos pedaços, da ação de traçá-lo no mapa. É como se, no processo criativo, eu juntasse as partes de uma estrada que me leva a lugar nenhum, e, ali, onde não há nada, é onde a história me encontra. No papel em branco, como uma amálgama de peças que, juntas, formam uma máquina que roda: uma narrativa coesa, escrita, com começo, meio e fim, muito diferente da ideia original. Uma aproximação do potencial inicial, para mais ou para menos, mais para o norte ou para leste, um pouco mais profunda, um pouco menos lírica. Uma história que existe, mas, não se enganem: que ainda não está pronta.
Após essa aproximação, esse encontro, vem outra parte que adoro: a edição. Mas essa é uma conversa que daria um outro texto inteiro, que ainda não encontrei.
Muito obrigado,
caros leitores, caras leitoras, por chegarem até aqui. Como comentei na semana passada, essa é uma nova leva de textos que ando preparando sobre o lado “Escrevo” de Leio/Escrevo. Neles, irei comentar sobre o processo criativo da escrita e sobre algumas outras coisas que aprendi nesses muitos anos de jornada como escritor. Espero que gostem.
Caso tenham se interessado sobre esse meu processo, escrevi um conto em que abordei exatamente essa aproximação da história como tema, e o publiquei na Amazon em 2020 com o nome Crônica do Carrinho de Feira.
Você pode lê-lo de graça com o Kindle Unlimited, ou comprá-lo pela bagatela de R$4,99. É só clicar no link:
E, se quiser conhecer outros 20 contos meus, conheça meu livro Cães Noturnos, que saiu pela Laranja Original em 2023:
Um abraço,
Ivan Nery Cardoso.